Por Dr. Stephan Oliveira
CRM: 5269692-7
RQE: 21162
Uma interessante disputa travada atualmente acerca do estatuto ontológico dos diagnósticos psiquiátricos se dá entre as chamadas correntes naturalistas e normativistas.
O naturalismo defende que as categorias nosológicas psiquiátricas existem independentemente das construções linguísticas, ou seja, são dadas à priori, estão ali na natureza, prontas para serem “descobertas”, aparecendo sob a forma de disfunções. O normativismo, por sua vez, adota a posição de que uma função específica, como aquela relacionada ao funcionamento de redes neuronais, só pode ser designada enquanto uma disfunção a partir de sua relação com as normas e valores sociais vigentes. A ideia de disfunção já vem carregada, desta forma, por uma atribuição valorativa. Portanto, no normativismo, há a ideia de construção social dos diagnósticos, inclusive, médicos, num sentido mais amplo, e não de “descoberta”.
Considero a posição naturalista “forte” de difícil sustentação no contexto atual, pois, fundamentada numa tradição positivista, se vincula fortemente a uma visão representacionista da linguagem, ou seja, a uma correspondência exata entre linguagem e mundo. Esta concepção é de difícil sustentação diante da confrontação com o pensamento pós-moderno.
Adoto uma posição muito próxima do normativismo, uma espécie de “normativismo fraco”, pois considero que as categorias nosológicas, que os transtornos mentais, podem ser entendidos como “fatos biológicos socialmente inapropriados” (baseio-me na definição do sociólogo norte-americano Alan Horwitz (2002) sobre os transtornos mentais, definindo-os como “disfunções internas socialmente inapropriadas” – nota-se a substituição da expressão disfunções internas por fatos biológicos), entendendo que estes “fatos biológicos” conferem limites e possibilidades às atribuições valorativas, ou seja, aos julgamentos de valor, mas não os determinam. Por outro lado, as normas e valores sociais vigentes que determinarão se um fato biológico será valorado negativamente, enquanto uma patologia, por exemplo, ou não. Há uma complexa imbricação, portanto, entre natureza e cultura.
Como então definir, a partir das normas e valores sociais de nosso contexto, se uma determinada condição, comportamento e/ou funcionamento, deverá ser considerado uma patologia, uma doença, um transtorno mental, ou não?
Bom, neste ponto devemos pensar nos valores-referência que estão em jogo na atribuição de uma patologia a um fato biológico específico. O valor da vida é um deles; tudo que ameaça a vida em termos biológicos deve ser considerado como patológico. Trata-se do valor que permeia a medicina na construção da maioria das doenças médicas, sendo um valor praticamente inquestionável em nossa e em tantas outras culturas.
No entanto, quanto entramos no campo psiquiátrico, este valor aparece em apenas algumas situações, como no caso das tentativas de suicídio, ou seja, que colocam em risco a vida. Na maioria dos quadros psiquiátricos, o que estão em jogo são o valor do alívio do sofrimento/produção de bem-estar e o valor do comportamento desejável. Este último não deve ser critério para a construção de nenhuma categoria nosológica, pois é extremamente variável, não só de cultura para cultura, como também dentro de uma mesma cultura. O que é desejável para mim não é para você e vice-versa.
Fiquemos então com o valor do alívio do sofrimento. Este, assim como o valor-referência da vida, pode ser considerado também inquestionável em nossa cultura. No entanto, ele se torna problemático quando o sofrimento se deve primordialmente a fatores externos, a condições sócio-ambientais (não em termos etiológicos), como por exemplo, práticas discriminatórias e preconceituosas, normas rígidas e inflexíveis, aspectos sócio-políticos, como restrição da liberdade, etc. Logo, faz-se necessário estabelecer uma distinção entre um tipo de sofrimento “intrínseco” (que, de certa forma, se mantém mesmo diante de condições externas razoavelmente satisfatórias) e este sofrimento que mencionei, que se deve principalmente a fatores externos. Nota-se que não se tratam de fatores externos, biológicos ambientais ou psicossociais, envolvidos na gênese de um determinado transtorno. Como esta distinção, entre um sofrimento “intrínseco” e um sofrimento que se relaciona diretamente a fatores sócio-contextuais, é extremamente sutil, os valores-referência que se encontram presentes na construção dos diagnósticos psiquiátricos são, no mínimo, passíveis de disputas, de conflitos, como nos mostra o psiquiatra britânico Bill Fulford (Fulford et. al, 2006).
Portanto, categorias psiquiátricas, pautadas no valor-referência do alívio do sofrimento (quando este se mantém mesmo diante de condições ambientais relativamente favoráveis), parecem ter maior validade. Arrisco-me, aqui, a mencionar algumas delas, em termos de síndromes, ou seja, do agrupamento de sinais e sintomas; categorias estas que se encontram presentes na psiquiatria, ainda que sob outras nomenclaturas, há mais de um século, confundindo-se com a própria fundação do campo. São elas: síndromes ansiosas, síndromes de alterações do humor (incluindo a depressão e o transtorno bipolar), síndromes esquizofrênicas, síndromes relacionadas ao uso de substâncias psicoativas, e no caso da infância, a deficiência intelectual e o autismo de baixo-funcionamento. Estas duas últimas categorias podem ter sua validade questionada, uma vez que não é certo que o sofrimento gerado por estas condições seja intrínseco, ou seja, sem que se tenha uma relação direta com o contexto sócio-ambiental. O fato é que as demais categorias citadas têm grande validade e poderiam servir como uma base para uma ampla reformulação das classificações diagnósticas no campo da psiquiatria ocidental, elevando, desta forma, a validade dos diagnósticos, que vem sendo questionada por muitos na atualidade, colocando em cheque a própria credibilidade do campo. O termo síndromes é empregado no plural, pois obviamente haveriam muitos subtipos nestes quadros, como o TOC, o TEPT, o Transtorno do Pânico, etc, dentro das síndromes ansiosas, a esquizofrenia, formas esquizofreniformes, síndromes delirantes, dentro das síndromes esquizofrênicas e assim por diante.
Quando entramos no terreno arenoso do sofrimento gerado, sobretudo, pelas condições sociais externas imediatas, entramos no campo da luta pelas não-patologizações de determinados tipos de funcionamento, de modos de ser-no-mundo, no campo da luta pelas diferenças, pela diversidade, pela validade das múltiplas formas de existência biológica, cultural, humana, pela biodiversidade, no campo dos movimentos sociais da deficiência, que a definem como em termos de diferença e não de patologia. Como afirma o pesquisador Lennard Davis (2010), “somos todos incompletos, parciais, dependentes e interdependentes”. Chegamos então ao movimento da neurodiversidade.
Os movimentos da deficiência, como o Deaf Pride, o Mad Pride, dentre tantos outros, inspirados nos movimentos feminista, no Black Pride e Gay Pride, dos anos 60, serviram como inspiração para o movimento da neurodiversidade.
O termo neurodiversidade surgiu inicialmente em 1990, cunhado pela socióloga australiana e também autista de alto-funcionamento, com Síndrome de Asperger, Judy Singer. Trata-se de um movimento que diz respeito à diversidade das redes neuronais do ser humano. Na verdade, todo funcionamento neuronal parece, diante das evidências recentes, ser singular, diverso. Contudo, outras terminologias foram surgindo a partir do viés da neurodiversidade. Aos funcionamentos neuronais mais próximos de uma média, atribui-se o termo neurotipia ou funcionamento neurotípico. E àqueles funcionamentos mais distantes da média, atribui-se o termo neuroatipias ou funcionamento neuroatípico, próprio de um neurodesenvolvimento atípico. Na prática, os termos neurodiversidade, neuroatipia e neurodivergência acabam sendo utilizados como sinônimos.
Um dos argumentos empregados pelos defensores do movimento, bastante forte por sinal, é de que a neurodiversidade, incluindo as neuroatipias, se deve à variação natural do genoma humano, à variabilidade genética natural da raça humana e necessária à sobrevivência da espécie.
Os adeptos do movimento defendem, portanto, que o autismo é um modo de ser, uma diferença, que não deve ser “curada” – adotam uma posição “anti-cura” e são radicalmente contra terapias que visam normatizar, “reprimir a expressão natural do autista”, numa tentativa de conformá-la às normas e padrões sociais vigentes – (ver Ortega, 2008; 2009), sendo favoráveis à acomodação social, a uma ampla reformulação do sistema educacional e de saúde, de modo a atender às necessidades e particularidades dos indivíduos autistas, a uma ampla conscientização por parte da população que, no caso de contextos rígidos, inflexíveis, intolerantes, discriminatórios e preconceituosos, o que está doente é a sociedade e não o indivíduo. Por outro lado, são favoráveis, no âmbito da saúde, a terapias que visam meramente a melhoria da qualidade de vida e a promoção do bem-estar, como por exemplo, as musicoterapias, arteterapias (exemplo meu), ou o tratamento de sintomas específicos, como para qualquer outra pessoa, como sintomas ansiosos, depressivos, etc.
Um dos grandes problemas enfrentado pelo Movimento da Neurodiversidade é que se trata de um movimento feito por autistas chamados de alto-funcionamento, que “falam” em nome de todos os autistas, incluindo aqueles de “baixo-funcionamento” e “não-verbais”. Despatologizar o autismo de baixo-funcionamento se torna uma tarefa muito mais árdua e conflitante com relação à despatologização de outras formas ditas mais “leves” de autismo.
Seguindo a tendência do autismo, inúmeros outros sujeitos que apresentam outras tantas condições, a maioria delas categorizadas nos chamados transtornos do neurodesenvolvimento no DSM-5, têm reivindicado também o status de neurodiversos ou neuroatípicos/neurodivergentes. São elas: os transtornos da comunicação, a síndrome de Gilles de la Tourette, a dislexia, a discalculia, o próprio TDAH (que sendo neurodiversidade, deveria ser chamado como dificuldade de atenção e hiperatividade, e não em termos de déficit). Pode-se incluir também como neurodiversos outros tantos sujeitos com funcionamento neuronal atípico, como por exemplo, os canhotos, os indivíduos com inteligência lógico-matemática acima da média, aqueles com múltiplas habilidades/inteligências, e tantos outros. Pode-se chegar até um certo ponto em que a neuroatipia se torne a norma.
Nick Walker, psicólogo clínico, autista com síndrome de Asperger, propõe uma ampla reformulação para as sociedades decmocráticas e plurais que pretendemos, no sentido de que elas acolham a neurodiversidade. Walker defende o neurocosmopolitismo, “uma sociedade que estimasse o amor, a novidade, a beleza, o riso, o conhecimento e o encantamento como as contribuições mais valiosas que uma pessoa pudesse fazer, teria não apenas uma atitude positiva com relação à neurodiversidade, mas seria também uma sociedade melhor para todos” (ver https://autismoemtraducao.wordpress.com/2015/01/25/neurocosmopolitismo/).
Referências:
ver Nick Walker – http://neurocosmopolitanism.com/
Davis, L. (2010). The End of Identity Politics: On Disability as na Unstable Category. In: The Disability Studies Reader. 3ed. Ed. By Lennard Davis. University of Illinois at Chicago. Routledge
FULFORD, K.W.M.; THORNTON, T. e GRAHAM, G. (2006). Oxford Textbook of Philosophy and Psychiatry. Oxford University Press.
GAUDENZI, P. (2014). A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. São Paulo, 17(4), 911-924.
HORWITZ, A.V. (2002). Creating mental illness. University of Chicago Press.
Ortega, F. (2008). O Sujeito Cerebral e o Movimento da Neurodiversidade, Em: Mana, vol. 14, no2, Rio de Janeiro.
Ortega, F. (2009). Deficiência, Autismo e Neurodiversidade, Em: Ciência e Saúde Coletiva, vol.14, no1, Rio de Janeiro.